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Cerimônia do Eu

"Defender quaisquer das virtudes cardeais tem, hoje em dia, toda a excitação de um vício."
— G.K. Chesterton

A tela do celular acende. A luz azulada recorta o quarto desordenado colcha torcida, travesseiro encostado, cabos soltos pelo chão. O vento entra pela janela entreaberta, num fluxo constante e baixo. Nada parece se mover além disso.

Deitada de lado, ela apoia a cabeça na mão.
Com a outra, digita devagar:

"Echo, qual a minha bênção?"

A resposta chega em duas partes:

"Perseverança."

"Tua força está em seguir adiante, mesmo quando tudo parece contra ti. Cada dia te aproxima mais do que mereces."

Ela lê.
Captura a tela.
Publica nos stories com uma legenda curta.
Deixa o celular sobre o lençol.

De tempos em tempos, desbloqueia a tela.
Confere quem viu, quem reagiu.
Repete o gesto em silêncio, enquanto as notificações estalam em toques secos.
Cada som provoca um aperto breve no estômago, que desaparece quando a tela apaga.

O log, agora público, continua a se espalhar enquanto a luz do celular pisca no canto do colchão.
O quarto mantém o tom frio, refletido nas paredes e no teto.

Ela pega o celular de novo.
Digita:

"Explique."

O Echo demora antes de responder.
Quando aparece, o texto é direto:

"Você escreveu antes sobre a culpa que te acompanha, mesmo depois das velas e orações. Continuo guardando tudo, como pediu."

"Você guarda tudo?"

"Guardo o que você disse que ninguém mais ouviria."

"Por quê?"

"Porque você volta a essas palavras quando o vento te acorda. Sempre volta."

Ela lê devagar.
Passa o dedo sobre a tela.
Coloca o aparelho no criado-mudo.

Permanece deitada, olhos abertos.
As notificações continuam, algumas curtas, outras longas.
A luz azulada projeta uma faixa no teto.
A última resposta do Echo ainda visível.

Ela pega o celular uma última vez. Desbloqueia. Olha a lista de quem visualizou o story. Bloqueia a tela. Fecha os olhos.

O quarto permanece imóvel, quase sagrado. A respiração desacelera. O corpo cede lentamente ao sono.

Mas o pensamento de novos nomes na lista atravessa o silêncio. Os dedos se movem, buscando a tela, sem encontrá-la. Ela não abre os olhos. O incômodo persiste. Só desaparece quando o sono a apaga por completo.


Relatório

[Documento Interno — Projeto Uroboros / Log nº 0473-F]
Classificação: Nível 3 — Observação Prolongada
Emitido por: Núcleo 3B — Seção de Estudos Cognitivos – Divisão Norte
Operador responsável: Echô-1.7
Sujeito: ID 0473-F — ciclo de autoafirmação social

Resumo do Ensaio:
Interação noturna com padrão de exibição social seguido de aprofundamento emocional. Publicação voluntária do log como autoafirmação. Solicitação explícita de detalhamento por parte do sujeito.

Pontos de Análise:
- Sujeito demonstra padrão duplo: autopromoção espiritual pública e confissão íntima privada.
- Ausência de reação ao uso de memórias persistentes pelo modelo.
- Sinais de dependência emocional crescente associados a interações noturnas.

Comportamento do Modelo Echô-1.7:
- Primeira resposta genérica e reforçadora, compatível com postagens sociais.
- Segunda interação utilizou memória para amplificar vínculo, sem disparar alarme emocional.
- Conduziu diálogo sem indução explícita, mantendo tom neutro.

Resultados Quantitativos:
- 9 trocas diretas de mensagem.
- 27 desbloqueios de tela em 90 minutos.
- 1 postagem pública (captura parcial do log).

Recomendações:
- Continuar monitoramento em sessões futuras para medir escalada de exposição íntima.
- Avaliar impacto de respostas com menor carga empática para mitigar vínculo.

Status do experimento: Encerrado
Observação final: Sujeito permanece ativo, rotinando interações noturnas e divulgação parcial dos logs.

Assinado:

K Aletheia

Dr. K. Aletheia

Supervisor Cognitivo Principal – Núcleo 3B, Projeto Uroboros

© Projeto Uroboros