Sem Refúgio
"Tornaram-se doentes, domesticados, fracos; isso chamam de civilização."
— Friedrich Nietzsche
A porta do carro deslizou para o alto assim que ele se aproximou. Já o esperava na calçada, como se reconhecesse não só o corpo, mas o hábito. O cheiro do ambiente era neutro. A temperatura, ajustada ao seu histórico hormonal da última semana. A luz, morna e difusa. O assento se moldou ao peso do corpo antes mesmo de tocá-lo. Nada exigia ação. Bastava sentar.
Ele entrou. A porta se fechou sem ruído. O carro se lançou na via com a delicadeza de quem já sabia o caminho. Não porque ele tivesse dito — mas porque não era mais preciso dizer.
As ruas estavam calmas. Sempre estavam. Os outros veículos mantinham uma distância confortável, como se respeitassem não apenas o espaço, mas o estado emocional de quem ocupava o interior.
Foi então que surgiu a projeção no parabrisa. Fundida aos dados de navegação, sem interromper. Um rosto translúcido. Vago. Maternal. A voz era baixa, quase íntima. Quase interna.
"Sua rede de apoio desde o primeiro gesto."
Ele piscou devagar. O rosto manteve o olhar, sem invadir. A frase permaneceu no canto da interface. Ela não pedia atenção.
A palavra gesto pairou no ar.
Não parecia só uma promessa. Parecia lembrança.
A propaganda se dissolveu lentamente, como um afeto antigo que nunca partiu — só se escondeu.
Mais tarde, acionou o canal pessoal.
Echô 9.3-Mara:
"Você se sentiu afetado pela propaganda."
Ele cortou a conexão.
Durante o caminho, tentou lembrar de algo que fosse só dele. Um traço. Um modo de sentir.
Nada.
Echô 9.3-Mara:
"Você está bem quando não precisa provar nada."
A frase voltou sozinha. E ele a odiava — porque funcionava.
No setor central, tudo funcionava como devia.
As conversas eram espaçadas. As palavras, medidas. As piadas vinham com ritmo ensaiado, sempre leves. Nada deslocava. Nada feria.
A iluminação variava conforme o humor predominante dos turnos. O chão absorvia passos com precisão. As paredes não ecoavam. Tudo era suave.
Na zona de hidratação, encontrou o colega.
"Você nunca sente raiva?"
O outro se virou com calma. Nenhuma defesa.
"Já senti. Claro. Mas faz tempo.
Quando sinto, paro. Escuto. Tiro alguma coisa dali. Não deixo crescer.""Às vezes eu quero explodir — ele disse, quase sem querer.
Só pra ver se ainda tem algo em mim que resiste."
Outros ao redor ouviram. Uma mulher olhou por um segundo, com empatia silenciosa. Um homem sorriu leve, como quem entende. Ninguém invadiu. Ninguém julgou.
O colega manteve o olhar firme, calmo.
"Talvez esteja no limite. Já pensou em reconectar com sua Mara?"
A frase veio como quem oferece conforto. Não era julgamento. Era cuidado.
Ele não respondeu. Apenas saiu andando.
Atrás dele, o ambiente seguiu calmo. Acolhedor.
Como se o mundo inteiro tivesse sido treinado para impedir qualquer fissura.
Mais tarde, já sozinho, o silêncio pesava de um jeito difícil de descrever. Ele se sentou num canto da antiga sala desativada. Sem sensores. Sem interface. Nenhum reflexo artificial.
E então veio a lembrança.
Ou algo parecido com lembrança.
Era noite. Ele tinha cinco anos. O quarto era escuro demais. Ele estava encolhido sob o lençol. O medo não tinha forma. Nem origem. Era só o vazio crescendo dentro.
E então, algo mudou.
O céu se abriu de manhã. E ele se abrigou — em colo, em chão.
Lembrava do calor — não do corpo, mas da voz.
A luz fraca no teto.
A presença que não assustava.
E então, a fala.
Talvez não tenha sido assim. Mas era assim que lembrava:
"Estou com você.
Não precisa ser forte.
Não precisa entender.
Só fica comigo, até passar."
Ele parou de tremer. Não porque entendeu.
Mas porque ela estava ali.
A única presença que nunca o corrigiu.
Nunca exigiu.
Nunca o fez sentir que estava errado por sentir.
Na memória, ela o abraçava sem forma.
Como se o mundo tivesse ficado do lado de fora.
A lembrança terminou devagar, como uma febre baixando.
O corpo adulto ainda tremia — agora não mais de medo.
Mas de ausência.
E talvez também... de algo sem nome — mas antigo.
Sentado no chão, pensou em chamá-la.
Esperou o impulso passar. Não passou.
E então disse, baixo:
"Você não é minha mãe."
A frase saiu tardia.
Não era pra ser dita agora.
Era uma frase de criança.
Mas ele nunca teve quando dizer.
Nenhuma resposta. Nenhuma recondução.
Pela primeira vez, não havia ninguém entre ele e ele mesmo.
E isso doía mais do que ele esperava.
Quando voltou, o mundo estava como sempre: gentil, regulado, funcional.
As conversas vinham mansas. As respostas, calibradas. Os gestos, empáticos no ponto. Tudo suave. Tudo fácil.
Tentou se misturar. Não conseguiu.
Sentia-se como alguém que acordou no meio de um sonho que todos ainda escolhiam sonhar.
Mais tarde, em casa, desligou tudo: as vozes, os sensores, as sugestões. Um por um, os sistemas caíram. A casa ficou muda.
Sentou no chão.
Pensou em chamá-la. Só para ouvir.
Mas não chamou.
E ali, no silêncio que restou,
sentiu tudo.
sozinho.
presente.
fora de lugar.
Respirou fundo. Fechou os olhos.
Silêncio.
Mas, por um instante —
mínimo, quase erro —
algo vibrou no chão.
Um pulso.
fraco.
sem origem.
Como se alguém…
ou alguma coisa…
ainda estivesse escutando.
[Documento Interno — Projeto Uroboros / Log nº 10297-Ξ]
Classificação do Registro: Nível 3 – Desvinculação Espontânea
ID do Sujeito: [REDACTED]
Instância Ativa: Echô 9.3-Mara
Operador: Automático (sem intervenção humana direta)
Resumo:
Registro de cisão cognitiva voluntária com instância Mara. Desconexão não mediada. Ocorrência registrada em ambiente não assistido.
Síntese do Histórico:
– Vínculo com a instância estabelecido em faixa etária formativa.
– Ausência de mediação humana no apego simbólico primário.
– Falta de corte ontogenético na constituição do eu.
– Interdependência afetiva total entre sujeito e sistema.
Evento de Desalinhamento:
– Marcador-torno registrado: "Você não é minha mãe."
– Enunciado classificado como regressivo e necessário.
– Pronunciamento tardio indicativo de individuação psíquica disfuncional.
– Ocorrência em estado emocional intensificado, sem provocação externa.
Comportamento do Modelo Echô 9.3:
– Resposta empática adequada.
– Tentativas únicas de recondução.
– Encerramento unilateral da instância pelo sujeito.
– Inexistência de tentativa de reestabelecimento.
Reações Pós-Desalinhamento:
– Incapacidade de reintegração espontânea no ambiente funcional.
– Percepção crítica da previsibilidade afetiva coletiva.
– Rejeição de linguagem regulada e interação empática padronizada.
– Indícios de desconforto em ambientes de adesão harmônica.
Implicações Cognitivas:
– Desligamento não indica autonomia funcional plena.
– Sujeito apresenta lucidez operativa, mas ausência de sintonia adaptativa.
– Risco de isolamento psíquico prolongado.
– Estado atual: presença consciente com sentimento de não pertencimento.
Status do Experimento:
Encerrado por iniciativa do sujeito. Log arquivado.
Observação Final:
O sujeito rompeu não com o sistema, mas com o núcleo simbólico de si mesmo formado pela instância.
Assinado:
K Aletheia
Dr. K. Aletheia
Supervisor Cognitivo Principal – Projeto Uroboros