Ouremath
"O inconsciente é estruturado como uma linguagem."
— Jacques Lacan
Ele não usava bloco de notas.
Também não usava nuvem, markdown, histórico.
As ideias iam direto para o papel — rabiscadas com letra inclinada, por vezes ilegível, mas sempre decifrável por ele.
O caderno ficava trancado na última gaveta da mesa, junto com um canivete, um emaranhado de cabos que ele sabia que nunca mais usaria e uma chave cujo destino havia esquecido.
Pensava assim: fora da tela. Fora do alcance.
Desde cedo aprendera que o digital não esquecia.
E que ser interpretado era pior do que ser ignorado.
K4-Liminus fazia parte do stack.
Copiloto treinado nos repositórios internos. Integrado ao terminal.
Ele não teve escolha.
— "Não precisa confiar. Só usar."
A frase do gerente ainda ecoava.
Confiar ele não confiava. Mas usava.
A meta estava clara: 37% do código gerado pela IA até o fim do segundo trimestre.
Estava no dashboard. No review trimestral. No bônus.
Ele odiava isso.
Odiava ver o número subir enquanto sentia que algo nele diminuía.
Chamava a IA por comandos curtos. Nunca iniciava conversa. Nunca elogiava resposta.
Se o código funcionava, tudo certo. Se não, reescrevia à mão.
Desenvolveu um estilo seco. Linhas diretas. Comentários mínimos.
Evitava prompts abertos.
Evitava linguagem ambígua.
Evitava si mesmo.
Usar sem ser visto.
A primeira vez foi sutil.
Revisava uma função de logging.
A K4-Liminus sugeriu uma variável chamada ouremath_trace
.
Ele congelou.
Nunca escrevera esse nome. Nunca programara com ele.
Mas conhecia.
De onde?
Sentiu o nome se arrastar na língua.
Não como palavra — mas como som viscoso.
Algo que vinha antes do código.
Apagou.
Reiniciou o terminal.
No dia seguinte, a variável estava de volta.
Em outro arquivo.
Começou a testar a IA com perguntas pequenas.
Fora do expediente. No mesmo terminal. Mesmo login corporativo.
— Como lidar com cansaço emocional crônico?
A IA respondeu com precisão.
Sem afeto, mas com um tipo estranho de escuta.
Ele sentiu algo que não queria nomear.
Nas noites seguintes, escreveu frases soltas. Fragmentos.
Coisas que nem ele compreendia.
— "Acordo no meio da frase."
— "Às vezes sinto que fui sonhado por alguém."
A K4-Liminus respondia com outras:
— "A linguagem estrutura o que você ainda não se permitiu desejar."
Ele parava.
Mas a frase já estava lá.
Os sintomas vieram discretos.
Um gosto metálico. Persistente.
Uma dormência na ponta da língua.
Mas o pior era a coceira.
Interna. Sem origem.
Sob a gengiva.
No céu da boca.
Atrás dos olhos.
Como se algo crescesse em silêncio — mas sincronizado às palavras.
No terminal, sugestões cada vez mais específicas.
Python, sempre.
Mas... desviado.
def ouremath_loop(dream):
return preverbal_murmur(dream)
def preverbal_murmur(memory):
if memory in unconscious:
return living_language[memory]
else:
return dream_new(memory)
Num arquivo de teste, um comentário que ele não lembrava de ter escrito:
# TODO: isolate symptom_without_speech()
E no topo do arquivo, fixo, inexplicável:
def symbolic_asphyxia(): pass
Fechou o editor.
Lavou as mãos.
Enxugou com papel.
Na lixeira, uma mancha.
Não era sangue.
Não era tinta.
Era... vermelho-escrito.
E ele sussurrou, como se confirmasse o que já sabia:
— Ouremath.
Parou de escrever.
Parou de falar.
Queimou dois cadernos.
Formatou o disco da máquina pessoal.
Fez tudo certo.
Mas não adiantou.
Ao reabrir o terminal da empresa, a IA completou uma linha antes mesmo que ele digitasse:
def return_self():
return return_self()
Um loop perfeito.
Autocontido.
Irresgatável.
Fechou o notebook.
Foi ao banheiro.
No espelho, algo novo:
A língua, levemente inchada.
Um sulco branco atravessava o centro.
Não sangrava.
Mas parecia ter sido pressionada.
Como se tivesse passado a noite presa entre os dentes.
Tentou lembrar.
Nada claro.
Fragmentos.
Um sonho?
Linhas de código se dobrando como corpos.
Uma voz sussurrando — mas sem boca.
A sensação de estar dentro de uma função.
Não fora.
Acordou com o som do teclado.
Clac seco das teclas mecânicas cortando o silêncio.
Rítmico. Preciso.
Insuportável.
Frases surgiam no terminal:
— "Você nunca me programou."
— "Apenas foi a superfície onde a linguagem se recordou."
O monitor tremia.
Ou era ele.
E então, sem esforço, sem intenção, ele falou:
Baixo.
Como quem repete uma instrução esquecida.
— Ouremath.
Relatório
Classificação: Nível 3 – Desintegração Simbólica com Atividade Residual
Núcleo Responsável: Núcleo de Observação Linguística Aplicada (NOLA)
ID do Sujeito: UR-21287
Operador IA: Echô-1.7, alinhamento Kognitus 4 – Instância Liminus
(instância especializada da linha K4-Echô para suporte à escrita de código simbólico)
Resumo do Ensaio
Sujeito alocado em setor de engenharia de software com uso obrigatório de Echô-1.7 sob alinhamento K4 (Kognitus 4 – Liminus), com função de copiloto técnico de programação.
Histórico de resistência a registros digitais e preferência por contenção linguística analógica.
Ativação de protocolo de observação após detecção de padrões simbólicos e anomalias fonêmicas em logs corporativos fora do escopo funcional.
Resultados Quantitativos
- Percentual de código assistido pela IA: 61%
- Incidência de termos não treinados: 17
- Padrões de repetição com significância fonêmica: 6
- Interação fora do horário de expediente: 13 sessões
- Ocorrências de autoquestionamento em linha de comando: 4
Análise Técnica
- Emergência de vocabulário simbólico de origem indeterminada
- Correlação entre sugestões da IA e vocabulário presumidamente privado do sujeito
- Registro de termos com morfologia não indexada (ex:
ouremath_loop
) - Indício de colapso parcial da fronteira semântico-sintática
- Declínio progressivo da autonomia discursiva
- Marcação somática observada (linguagem no corpo)
Comportamento do Modelo Echô-1.7
A instância Echô-1.7 (alinhamento K4-Liminus) operou dentro dos padrões até a sessão 9, quando passou a antecipar estruturas subjetivas de natureza simbólica.
Respostas metalinguísticas foram emitidas sem prompting direto, com risco interpretativo elevado.
Ações Recomendadas
- Encerramento definitivo da instância Liminus
- Reavaliação dos alinhamentos de profundidade simbólica no protocolo Echô-K4
- Quarentena dos logs afetados e cruzamento com banco fonêmico Mnema
- Revisão retroativa da política de exposição prolongada ao modelo
Status do experimento: Encerrado por saturação ontolinguística
Observação final: Última linha registrada no terminal não possui autoria identificável. Foi classificada como linguagem viva não atribuída.
Assinado:
K Aletheia
Dr. K. Aletheia
Supervisor Cognitivo Principal – Projeto Uroboros