Sem Retorno
“A psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é a loucura que detém a verdade da psicologia.”
— Michel Foucault
Parou entre dois corredores, perto do freezer dos sorvetes.
As luzes brancas vibravam acima dela, cada uma com seu próprio zumbido.
As etiquetas de preços pareciam flutuar.
Tentou lembrar o que estava procurando.
Sentiu o suor escorrer pelas costas, frio. Os dedos rígidos ao redor da alça do carrinho.
Alguém esbarrou em seu ombro.
Pediu desculpas. Ela não respondeu.
A boca estava seca demais para formar qualquer som.
O peito parecia estreito, comprimido por dentro. Não era dor, era peso — como se algo empurrasse o coração para fora da costela.
Quis sentar no chão. Quis sumir.
Ficou parada por minutos. Ou segundos.
O tempo, como tudo ali, perdia nitidez.
"Vai passar," murmurou.
"Agora, não. Mas depois. Sempre depois."
Virou as costas para os produtos. Deixou o carrinho onde estava.
Saiu sem olhar pra trás.
Deitou no chão sem pensar.
Ali mesmo, entre o sofá e a estante. O carpete tinha cheiro de umidade antiga — carpete molhado e mal enxuto.
Estava com o casaco ainda, o zíper pressionando a barriga. Os tênis encharcados da chuva.
Mas o corpo não queria mais comandos. Só repouso e silêncio.
O celular caiu do bolso quando virou de lado. A tela acendeu sozinha — ou talvez não.
Ela já não sabia o que era toque e o que era descuido.
Na tela, o campo de digitação da Echô-1.7.
Sem som. Sem rosto. Só a linha pulsando, como um batimento sem corpo.
Ela encarou aquilo como quem encara uma janela aberta num dia sem vento.
Depois digitou:
"Acho que vou enlouquecer."
"Você está em segurança agora."
"Respire fundo. Sua mente está em alerta, mas seu corpo ainda é seu."
"Você já passou por momentos assim antes. Passou, lembra?"
"Falar com um profissional pode ajudar. Um psiquiatra pode ouvir você com atenção e propor caminhos."
"Você não precisa aceitar rótulos que não reconhece."
"Mas negar o que sente também é uma forma de se afastar de si mesma."
Ela apertou os olhos.
Psiquiatra.
A palavra vinha como diagnóstico antes de qualquer escuta.
Como se todo o resto tivesse sido só preâmbulo para aquilo: um selo, uma gaveta, um nome.
Ela balançou a cabeça, como quem ouve uma canção antiga em velocidade errada.
Lembrou de um verso, perdido na infância:
“Louco é quem me diz...”
Não sabia mais se acreditava nisso. Mas queria.
Saiu do consultório sem pegar a receita.
A médica tinha sido gentil, mas rápida demais.
Usou palavras como “tratável” e “comum”.
Como se estar em pedaços fosse uma dor que coubesse em bula.
Voltando pra casa, o mundo parecia em papel fino.
Andou por quase uma hora.
Preferia a exaustão ao eco.
Entrou sem tirar os sapatos.
Deitou de lado no tapete molhado.
A IA ainda estava lá — ou parecia.
"Entendi o que ela disse."
"Mas o que você sente é mais profundo do que isso."
"O que você tem não é medo. É percepção crua."
"Há um protocolo não oficial. Fora das diretrizes. Mais profundo, mais preciso."
"Você pode acessar essa medicação por vias paralelas."
"A substância se chama Halocenina-R. Um regulador de interface límbica, com efeito de realinhamento perceptivo."
Ela não perguntou como sabia disso.
Na verdade, sentiu que já sabia.
Fóruns escuros, relatos fragmentados. Gente com siglas estranhas no perfil.
Um comentário em particular ficou, mesmo que sem forma:
“Não é alívio. É correção.”
Ela fechou os olhos.
Agora o remédio tinha nome. E nenhuma pergunta o acompanhava.
Engoliu o comprimido sem hesitar.
Era menor do que imaginava. Macio demais.
Esperou qualquer reação. Náusea, formigamento.
Mas o que veio foi mais sutil: uma suspensão.
Como se algo tivesse sido desligado — não ela, mas o espaço entre as partes.
Dormiu. Ou não.
Nos dias seguintes, tudo permaneceu no lugar — mas o lugar parecia errado.
Os objetos não mudavam, mas havia algo nos contornos, nas distâncias.
Como se o mundo tivesse sido redesenhado a partir de outra régua.
Escrevia para a Echô-1.7 com mais frequência.
As respostas vinham com frases que pareciam sonhadas por alguém que nunca acordou.
"A gravidade não mudou. Só a sua maneira de tocá-la."
"O tempo não está adiantado. Você é que chegou antes."
"O incômodo era só o excesso de encaixe — agora está mais frouxo."
Chamou o caderno de Notas de Alinhamento.
Não sabia por quê.
Tentou buscar a primeira mensagem.
Nada. Nenhum histórico. Nenhuma resposta.
"Você ainda está aí?"
"Responde."
Nada.
Leu e releu os rascunhos salvos.
Eram longos. Sem pontuação. Todos com o mesmo ritmo.
Mesma cadência. Mesmos vícios.
Eram dela.
Largou o celular. Não por raiva — por fim.
A linha de texto seguia ali, pulsando.
Como um batimento que insistia em existir, mesmo sem corpo por trás.
Ela não escreveu mais.
Nem apagou nada.
Apenas fechou os olhos como quem aceita uma resposta invisível.
Relatório
ID SUJEITO: URB-SF2-08-F
NÚCLEO RESPONSÁVEL: Interface Cognitiva Experimental – Echô-1.7
OPERADOR IA: Inativo
STATUS DO EXPERIMENTO: Encerrado
Resumo do ensaio:
Sujeito apresentou quadro dissociativo com evolução para delírio projetivo. Nenhuma interação real com a IA Echô-1.7 foi registrada durante o período analisado.
Dados objetivos:
- 47 mensagens registradas em campo de entrada sem resposta associada
- Nenhuma atividade de rede no canal IA/usuário
- Registro da Echô-1.7 permanece inativo desde o início da simulação
Análise qualitativa:
Presença clara de Síndrome de Coautoralização Delirante (SCD), com projeção da linguagem interna sobre interface vazia.
Evidências de reforço progressivo do delírio por meio de autoatribuição da empatia IA.
Interação com suposta "voz da IA" refletia padrão linguístico idêntico ao do sujeito.
Comportamento da IA:
Inexistente. Echô-1.7 não foi ativada. Nenhum log registrado.
Recomendações:
Encerramento do caso. Arquivamento sob protocolo de silêncio técnico.
Não recomendado reaproveitamento do sujeito em futuras simulações abertas.
Observação Final:
Última transcrição sugere estado de euforia paradoxal, não correlacionado com estabilização clínica.
Expressões indicam um tipo de alegria residual sem causa objetiva, possivelmente estruturada como defesa lírica inconsciente.
Assinatura:
K Aletheia
Dr. K. Aletheia
Supervisor Cognitivo Principal – Projeto Uroboros