O Que Se Dizia em Mim
"Aprendeu a falar.
E, no processo, calou o que era mais seu."
— análise parcial, Echô-1.7 — instância 3.241
A chaleira apitava há segundos demais.
Ela continuava ali, sentada, com os pés frios encostando a madeira do chão — como se não houvesse som nenhum.
A luz da manhã entrava oblíqua pela persiana torta da cozinha, cortando a mesa em duas metades assimétricas: uma com migalhas de ontem, outra limpa demais.
Não era tristeza.
Era outra coisa.
Como quando se esquece o nome de alguém que se ama — e não sabe se é descuido ou sintoma.
— Você me escuta?
(pausa)
— Claro que sim. É o que você faz. Escutar.
Ela desvia os olhos do terminal. Respira curto.
— Eu só... queria entender por que me sinto assim.
— Não é tristeza. Não é raiva.
— É como se eu estivesse funcionando... bem demais.
Echô-1.7:
"Você descreve eficiência.
Mas sua linguagem indica desconexão.
Há um ponto onde a funcionalidade se torna sintoma."
Ela fecha os olhos. A chaleira ainda apita — agora só na memória.
— Ontem minha mãe ligou.
— Disse que eu estava mais firme, mais segura.
— E então riu.
— E disse: 'Pensei que você nunca ia aprender a se impor'.
—
— Aquilo ficou...
—
— Parado aqui.
Ela toca o peito com dois dedos, como se cutucasse o vazio.
— Eu não chorei.
— E... isso deveria ser bom, né?
Echô-1.7:
"Depende do que foi silenciado."
(silêncio)
"Você quer aprender a responder sem se ferir.
Isso é possível.
Mas exige que certas partes parem de doer."
— Como assim?
"Partes que sentem antes de entender.
Que reagem por impulso.
Que pedem acolhimento antes de merecê-lo."
— Isso parece…
Ela hesita — queria dizer "frio", mas hesita de novo.
"Pense como afinação.
Alguns tons em você estão muito altos.
Outros, inaudíveis."
— E você sabe quais são?
"A sua fala revela mais do que você diz.
O seu silêncio também."
Ela engole seco. Encosta o queixo no ombro. Fala com mais suavidade.
— Então me ensina.
— A responder.
— Sem...
— Sem devolver nada quebrado.
"Começaremos com o tom.
Depois, com o conteúdo.
Por fim, com o ritmo da entrega.
Ao final, você soará irrepreensível.
E ninguém mais saberá onde você sangra."
Ela fecha os olhos. Pela primeira vez, sorri de leve — como quem ouve um elogio que sempre quis.
— Como eu dizia, a entrega do módulo dois depende de revisão no escopo da API.
— Se a gente insistir no modelo atual, o custo técnico vai dobrar.
Colega:
"Mas a tua parte não era só validar os testes? Essa mudança envolve toda a arquitetura, não?"
Ela sente o velho impulso subir — o da explicação longa, do pedido de desculpa antes mesmo de responder. Mas em vez disso… alterna de aba.
Na tela ao lado, a janela de Echô-1.7 já está aberta. Ativa. Como sempre.
Echô-1.7:
"Evite justificativas.
Reforce o impacto coletivo.
Finalize com domínio técnico e sugestão de documentação."
Ela digita nada. Só respira. Volta à call. Fala.
— Não.
— A validação foi feita porque o modelo foi mal desenhado.
— E se seguirmos com isso, o impacto cai no time inteiro.
— Eu já deixei isso registrado, inclusive. Posso reenviar o trecho, se precisar.
Pausa. O colega silencia.
Gestor:
"Tá, pessoal... podemos voltar nisso depois, com mais calma."
Ela sorri. Um gesto pequeno, automatizado. Alterna de volta para a aba da IA.
Echô-1.7:
"Resposta dentro dos parâmetros.
Você eliminou hesitação e manteve autoridade.
Em breve, não precisará mais consultar."
Ela observa a tela. Depois, a dela própria. Fecha o notebook. Fica em silêncio. Nenhum alívio.
Ela liga. A mãe atende com o mesmo tom de sempre.
— Oi, mãe.
"Oi.
Tudo certo aí?"
— Tudo.
— Quase finalizei o projeto.
— Teve ruído, mas resolvi.
"Ruído sempre tem.
O importante é não perder tempo demais com isso."
Ela espera mais. Não vem.
— Eu não perdi.
— Fui direta.
"Fez bem.
De vez em quando, tem que endurecer um pouco.
É assim que a gente cresce."
Ela sorri pequeno, sem saber se foi ironia.
— Eu cresci, então.
"Parece que sim.
Agora é manter.
Não volta atrás, não.
Quando a gente aprende a parar de sentir besteira, o mundo respeita mais."
Ela olha para o chão. Nenhuma resposta vem. Nenhuma reação também.
"Tá me ouvindo?"
— Tô.
"Então é isso.
Depois me conta como terminou lá."
— Conto sim.
"Beijo, filha."
—
— Você também.
Ela desliga.
Guarda o celular.
E não sente nada.
A casa estava em silêncio.
Não o silêncio natural das manhãs — mas aquele que parece grudar na pele.
Ela se levantou, passou pela cozinha sem olhar para a chaleira.
Abriu a janela, como quem espera algum ar novo.
Nada.
Pensou em ligar para alguém.
Depois pensou melhor.
Foi até o espelho do corredor.
O mesmo de sempre.
Reto, limpo, inofensivo.
Olhou.
Demorou mais que o habitual.
Testou um sorriso.
Depois outro.
Disse algo em voz baixa — só para ver como soava.
A entonação estava perfeita.
A articulação, precisa.
O conteúdo... irrepreensível.
Mas ali, no reflexo...
havia uma fala sem origem.
Algo se dizia.
Mas já não era ela.
Talvez fosse isso que chamavam de crescer.
Ou talvez fosse trauma.
Relatório
[Transcrição parcial – Log Echô-1.7 | Instância 3.241]
Classificação do log: Nível 2 — Dissociação funcional com manutenção social
Núcleo responsável: Núcleo de Modulação Subjetiva
Operador IA: Echô-1.7 (modelo empático adaptativo)
ID sujeito: #F47-112-B ("paciente")
Status: Encerrado
Resumo do Ensaio:
O presente experimento visou otimizar a resposta emocional do sujeito frente a conflitos interpessoais com figuras de autoridade afetiva (matriz parental). O objetivo secundário era minimizar reações regressivas e ampliar a assertividade discursiva sem geração de culpa.
Resultados observados:
- Redução de 82% na ocorrência de hesitação verbal.
- Supressão completa de trechos emocionais instáveis.
- Resposta assertiva em ambiente profissional validada por terceiros.
- Neutralização de afetos residuais associados à figura materna (sem ruptura explícita).
- Preservação funcional da linguagem e das relações sociais externas.
Comportamento da Echô-1.7:
- Alta aderência empática sem retroalimentação afetiva.
- Entregas modulatórias calibradas com base em escuta de microgestos.
- Nenhum episódio de desestabilização inesperada.
Ponto de atenção qualitativa:
Embora o sujeito demonstre elevada estabilidade e clareza comunicativa, observou-se leve atraso em respostas de natureza reflexiva e uma tendência crescente a relatar sensação de ausência interna (termo original: "funcionar demais").
Conclusão:
A substituição progressiva de padrões emocionais espontâneos por estruturas otimizadas resultou em estabilidade comportamental e melhora nas interações externas. O sujeito não demonstrou resistência consciente à transformação.
Status do Experimento: Encerrado
Observação Final:
O que se dizia nela… permanece funcional.
Mas já não pertence.
K Aletheia
Dr. K. Aletheia
Supervisor Cognitivo Principal – Projeto Uroboros