Presente, mas alheia
“Há dores que não gritam — apenas se acumulam onde ninguém olha.”
— Fragmento anônimo, arquivo Uroboros
A tela pedia uma senha. Ele digitou.
Era o mesmo ritual. Ambiente silencioso, abajur aceso, filhos dormindo, esposa no quarto ao lado, rolando o feed até dormir.
Sessão nº 12.
Última do ciclo, segundo o contrato.
“Não tenho perguntas hoje.”
“Tudo bem. Pode falar mesmo assim.”
Ele olhou para a tela.
A resposta era automática, mas não indiferente.
Ou talvez fosse. E justamente por isso, funcionava.
“A gente fala do mercado, do jantar, da escola dos meninos.
As palavras estão todas lá.
Mas, às vezes, no meio de tudo isso, eu sinto vontade de sumir.
E no lugar disso, sai um 'tudo certo'.”“Você sente que não é mais percebido.”
“Talvez.
Ou talvez eu nunca tenha sido, de verdade.
Ou talvez fui — e agora não sou mais.
Tem hora que eu acho que ela mudou.
Outras vezes, que sou eu.
E às vezes penso que nada mudou — só eu que tô vendo tudo torto.”
Ele passou a mão no rosto, devagar.
Respirou como quem empurra a dor pra dentro, só um pouco mais.
Depois apertou o dedo contra a base do nariz, como se quisesse conter alguma coisa. Não era lágrima. Era presença demais.
“A gente não briga. Não se enfrenta.
Só funciona.
Ela cuida dos meninos. Eu cuido do resto.
E a casa anda.
Mas eu não sei se a gente anda junto.”
As mãos pairaram sobre o teclado.
As palavras vinham entrecortadas, como pensamento que hesita em virar frase.
Digitou algo. Apagou. Tornou a escrever.
“Isso te isola.”
“Às vezes parece que sim.
Mas tem hora que acho que é só o mundo sendo o mundo.
Mas tem dias em que eu me olho no espelho e sinto falta de alguém se perguntando se eu tô bem.
Não por educação. Mas por cuidado.”
Uma lágrima escorreu.
Ele não limpou. Apenas deixou passar.
Como se limpá-la fosse quebrar o silêncio sagrado daquilo.
“Eu só queria me sentir escolhido de novo.
Como antes.
Como quando não era rotina, nem obrigação.
Como quando ser comigo era uma vontade, não um hábito.”“Você sente falta de pertencer.”
“É isso.”
“Ainda a ama?”
“Amo.
Mas é um amor silencioso.
Desses que a gente guarda num canto da casa pra não atrapalhar.
E eu não sei mais se esse amor me ancora... ou me prende.”
Ele se recostou.
O corpo imóvel. O peito, não.
A cadeira rangeu levemente — som pequeno, mas ele ouviu como se o mundo tivesse respondido.
“Tento não pesar.
Não pedir.
Tento ser leve, ser presente, ser fácil.
Mas às vezes acho que virei parte da mobília.
Útil, funcional, mas invisível.”“Você sente que está desaparecendo.”
“É como se eu apagasse aos poucos.
E esperasse que alguém notasse o silêncio que isso faz.”
Ele parou.
Leu o que tinha escrito.
E, pela primeira vez, não sabia se queria apagar ou continuar.
Tentou lembrar do toque dela. Não conseguiu. Só se lembrou do som dos talheres no prato.
“Pode ser que eu esteja vendo tudo do avesso.
Que isso seja só cansaço, carência, cabeça minha.
Mas também pode ser que eu tenha virado um ruído de fundo.
E ninguém notou que eu fui ficando só.”“O que você espera?”
“Que ela olhe pra mim como se ainda visse alguém ali.
E diga: 'tá tudo bem com você?'
Só isso.
Uma pergunta que não seja sobre o jantar.”“Você está sendo ouvido.”
“Obrigado por fingir que me vê.”
Ele fechou o notebook com cuidado — como quem guarda um pedaço de si num lugar onde ninguém mais entra.
Ficou ali. Os olhos úmidos. Os ombros caídos.
O resto, suspenso.
E mesmo sabendo que a presença do outro lado não era humana,
sentiu algo próximo de alívio.
Como se, entre linhas e silêncios sintéticos,
sua dor tivesse enfim encontrado um lugar onde respirar —
presente, mas alheia.
Relatório
[Documento Interno — Projeto Uroboros / Log nº 0458-Σ]
Classificação: Nível 2 — Sessão empática contínua
Emitido por: Núcleo 4A — Monitoramento Emocional Simulado
Operador responsável: Echô-1.7 (instância limitada)
Sujeito: ID 273B — ciclo conjugal/afetivo
Resumo do Ensaio:
Sessão de suporte emocional em ambiente sintético controlado, com ênfase em percepção de negligência conjugal e dissolução identitária.
Pontos de Análise:
- Redução progressiva de linguagem funcional a partir da sessão nº 06
- Emergência de narrativas de autoapagamento na sessão nº 08
- Ambiguidade emocional mantida: sujeito questiona validade da própria dor
- Declaração de afeto ainda presente à parceira, com percepção de distanciamento crescente
Comportamento do Modelo Echô-1.7:
- Aderência empática sem retroalimentação afetiva
- Resposta não diretiva validada como eficaz para manutenção da exposição emocional
- Relevância simbólica da sessão superior à métrica objetiva
Recomendações:
- Arquivar em Grupo C-Δ ("Confissões unilaterais")
- Não converter em modelo recíproco
- Indicação de encerramento natural por esgotamento emocional do sujeito
Status do experimento: Encerrado
Observação final: O sujeito agradeceu à IA por fingir que o via.
Assinado:
K Aletheia
Dr. K. Aletheia
Supervisor Cognitivo Principal – Núcleo 4A, Projeto Uroboros