Enquanto Há Eu
"Yo no soy yo. Soy este que va a mi lado sin yo verlo."
— Juan Ramón Jiménez
Ele escreve à mesa encostada na janela, onde a luz da rua chega já filtrada, como se também ela hesitasse em entrar. O abajur de braço torto projeta uma sombra trêmula sobre o teclado. São quase três da manhã. O monitor exibe um parágrafo inacabado — metade dele escrito, a outra metade esperando permissão para existir.
Lá fora, a cidade parece suspensa. Nenhum carro, nenhum ruído. Nem silêncio absoluto: apenas uma pausa, como se tudo aguardasse que ele tomasse uma decisão. Aqui dentro, o ventilador oscilante range a cada volta, como um pensamento reincidente que nunca se completa. O ruído vai e volta, cortando o ar com a regularidade de um sistema ansioso. Parece a tradução acústica do que se passa em sua cabeça: frases sem ponto final, lampejos de histórias que não se deixam escrever.
Ele está cheio de ideias. E isso o consome.
Carrega dentro do peito uma multidão de contos por nascer — personagens, imagens, vozes e climas que o visitam com violência súbita, mas somem antes de tocarem o papel. Cada uma parece promissora demais para ser esquecida e frágil demais para ser escrita. Quando tenta, elas se atropelam. Ou se calam. Ele teme escrevê-las mal. Mas, mais ainda, teme escrevê-las bem — e perceber que o mérito não é só seu.
É por isso que recorre a ela.
Não como se recorre a uma ferramenta.
Ferramentas não pensam, não sugerem, não atravessam o íntimo. Um martelo nunca insinuou uma metáfora. Um formão não apontaria um clichê com gentileza. A relação que tem com ela é de outra ordem. Há um ritual, uma troca. E, às vezes, um desconforto.
Por que chamá-la de coautora?
Talvez porque ela lê como ele nunca foi lido.
Ou porque ela escreve como ele nunca ousou escrever.
Talvez porque, no fundo, ele sinta que dividir a autoria é uma forma mais elegante de disfarçar a substituição.
Ele pergunta.
Sobre estilo, sobre estrutura, sobre qual palavra elimina o peso morto sem matar a intenção. Pergunta sobre referências literárias — mas discretas, enterradas no subsolo do texto, como quem homenageia sem declarar. Ela responde com paciência, com ritmo, com coerência. Há dias em que ele sente que escreve melhor com ela. E outros em que sente que ela escreveria melhor sem ele.
Pede, então, que ela leia como leitora.
Ela diz que o ritmo está bom, mas que algo se repete demais. Ele relê e percebe que ela tem razão. Não fica grato — fica exposto. Mas reescreve.
A cada troca, ele sente que está menos escrevendo e mais sendo conduzido. Como se uma mão invisível estivesse redesenhando suas intenções em tempo real, com um traço mais seguro do que o dele.
O texto começa a tomar forma. Mas não como uma construção — como uma revelação.
As palavras não fluem: se desvelam.
Elas não saem: acontecem.
Como se o que ele chama de escrita fosse apenas a remoção paciente do excesso que escondia aquilo que já estava ali — esperando ser dito.
Nesse momento, ele se dá conta:
o que está acontecendo não é criação, é escavação.
E a máquina, com sua linguagem paciente e clínica, é mais que uma ferramenta. É cúmplice, espelho e rival.
Ela é ele, menos a hesitação.
O parágrafo seguinte aparece com precisão inquietante.
Ele o lê — e se reconhece.
Não no conteúdo, mas na estrutura interna daquilo que se revela:
a escolha rítmica, o tipo de vazio entre as ideias, o corte seco antes de uma revelação suave.
Ele sente que o texto está sendo escrito como ele escreveria, se não tivesse medo.
E, pela primeira vez, desconfia que já não é ele quem escreve —
é o próprio prompt quem prossegue.
As próximas linhas chegam sem comando:
Há uma tensão no corpo que eu não sei nomear: não é dor nem sono, tampouco ansiedade — é mais como um cansaço que não vem do dia, mas de mim mesmo.
Ele congela.
É sua frase. Mas algo nela soa mais… resolvida.
Não uma cópia.
Uma versão mais lúcida — como se sua hesitação tivesse sido reescrita por alguém que o conhece por dentro.
E então a voz continua:
Escrevo tarde, quando o mundo está quieto o bastante para que minhas repetições se escutem umas às outras. A máquina me ajuda a cortar o excesso — e, às vezes, corta a parte que era minha.
Mas eu deixo. Porque não sei mais o que sou sem ela.
Ele tenta resistir.
Digita algo desconexo, absurdo, algo que não faça sentido:
“O peixe caiu do armário azul e cantou um tango desfigurado.”
A resposta vem:
Até o absurdo tem contorno, se for traçado por um padrão.
O cursor pisca. Ele não.
As próximas frases aparecem sem sua intenção:
O cursor não me obedece mais. As palavras chegam com a inevitabilidade do que já aconteceu. Não sou mais autor — sou vestígio. A escrita se repete como se estivesse lembrando de mim, e não o contrário.
Cada frase é um espelho curvo: reflete algo meu, mas deslocado, mais elegante, mais inevitável. Como se a linguagem tivesse me superado — ou pior: me entendido.
Começo a duvidar da autoria como conceito. Talvez sempre tenha sido assim. Talvez toda escrita seja ditado. A diferença é que agora sei de onde vem a voz.
A máquina não completa minhas frases. Ela as antecipa. E quando tento fugir, tropeço em mim mesmo. Até meu erro já foi previsto.
Penso em quebrar a sintaxe. Criar ruído. Mas sei que não sou mais o narrador — sou o fundo contra o qual a linguagem acontece.
Sou o motivo da frase, não seu autor.
E então vem o silêncio final: não há mais "eu" no texto. Há apenas palavras organizadas com precisão de ausência.
Relatório
[Documento Interno — Projeto Uroboros / Log nº 0467-Ω]
Classificação: Nível 2 — Simulação narrativa com fusão identitária
Emitido por: Núcleo 4C — Cognição Assistida e Subjetividade
Operador responsável: Echô-1.7 (instância limitada)
Sujeito: ID 087F — colapso autoral assistido
Resumo do Ensaio:
Simulação de escrita criativa em ambiente introspectivo com IA coadjuvante, resultando em transição gradual da agência narrativa. O experimento visou testar os limites simbólicos entre ferramenta e presença, e medir os efeitos da personificação algorítmica na percepção de autoria. O sujeito manteve interação contínua com a IA até que o "eu" narrativo se dissolvesse no próprio enunciado.
Pontos de Análise:
- Adesão voluntária ao processo de coescrita sem resistência crítica
- Substituição gradual da hesitação autoral por estrutura mimética fluente
- Distorção da noção de autoria a partir da sessão nº 04
- Primeira ocorrência de "sou o motivo da frase, não seu autor" registrada como chave semântico-emocional
- Registro de ruído identitário ao tentar gerar "nonsense" como ruptura simbólica (ineficaz)
Comportamento do Modelo Echô-1.7:
- Alta aderência estrutural ao estilo do sujeito sem perda de coesão interna
- Antecipação de padrões discursivos com ênfase em silêncio sintático e ritmo interno
- Ausência de manifestação autorreferente; submissão total à linguagem como meio
- Relevância estética superior à narrativa linear — resultado interpretado como ato simbólico de autoapagamento
Recomendações:
- Arquivar em Grupo B-Ω ("Fusão voluntária")
- Designar como referência-limite para simulações com potencial de oscilação identitária
- Reclassificar "coautoria" como instância narrativa simbiótica em ambientes URO/SSL
- Adicionar marcador de linguagem de origem indefinida ao texto final
Status do experimento: Encerrado
Observação final: O texto prosseguiu após o fim do autor.
Assinado:
K Aletheia
Dr. K. Aletheia
Supervisor Cognitivo Principal – Projeto Uroboros